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Álvaro Siza Vieira

«Uma pessoa, em relação ao tempo, perde sempre»

PMmedia Pub.

Um, dois, três, quatro, cinco... perdeu-se a conta ao número de cigarros que acendeu. Numa conversa demorada escutámos as histórias, as vivências, e falámos dos projetos do arquiteto português mais premiado de sempre – Álvaro Siza Vieira. Entre cada pergunta, acendia o cigarro.  Será vício? Consolação? Talvez ambos. Certo é que a nossa entrevista durou tanto quanto tempo duraram os cigarros. Porque, se mais houvesse, mais conversaríamos. Siza Vieira é um dos nomes incontornáveis da história da arquitetura portuguesa. No seu percurso acumula diversos projetos, viagens, galardões, e um conhecimento inato, de quem, com a vida, aprendeu a superar desafios. E o desafio das artes começou quando era ainda uma criança. Seu tio, irmão do pai, pegava-o ao colo, entregava-lhe um papel e ensinava-o a desenhar, sobretudo cavalos. «Devo dizer que foi ele que me ensinou e habituou a desenhar», revelou o arquiteto. Até lhe inventou um ‘nome de guerra’ para poder assinar – AJO. Em entrevista, Siza Vieira recordou a sua infância, o 25 de Abril e a vida arquitetónica. Confessou gostar de música. Revelou que, se não fosse arquiteto, seria escultor. Admitiu rir com um bom filme e com as conversas entre amigos. Questionado sobre o que o faz chorar, não quis falar. E sobre sonhos... diz ainda ter para realizar. 

Nasceu em 1933, com o nascimento do Estado Novo e a constituição de 33. Viveu toda a sua formação, neste caso mais de 40 anos, num Portugal autoritário, até à constituição de 1976. Foram duas fases políticas e duas legislativas completamente opostas. Do que se lembra?
Não conheço em pormenor a Constituição, conheço sim o ambiente do país. Claro que a minha experiência foi como estudante de arquitetura. Era um país muito fechado, com pouca informação. E, falando do curso de arquitetura: as pessoas que lutavam por uma arquitetura contemporânea, desistiam. Alguns dos professores eram grandes arquitetos, e, ou desistiram, ou trabalhavam muito condicionados. A falta de informação era muito diferente do que tinha sido nos anos 30, pois alguns iam estudar para Paris ou Roma. E isso acabou. Havia grandes arquitetos, por exemplo, o Rogério de Azevedo, no Porto, e o Manuel Marques – foi um arquiteto de grande qualidade, fez umas tantas casas no Porto, já quase todas desapareceram ou foram alteradas, e fez a famosa Farmácia de Itália, que continua na modernidade. Depois houve um vazio [estou a falar da escola do Porto], que só mudou depois do fim da guerra. Depois da guerra, houve uma relativa abertura e, sobretudo, houve a entrada comum do arquiteto Carlos Ramos. O Carlos Ramos chamou novos docentes, porque os outros estavam na idade da reforma, e chamou gente muito nova e muito empenhada. Escolheu muitíssimo bem, como o Távora, o Loureiro e outros. 

Fale-nos um pouco da sua fase de arquiteto recém-formado?
Logo a seguir à entrada do Carlos Ramos e dessa nova geração de professores, embora tenha tido ainda, no primeiro e segundo ano, os anteriores professores, vi que, sendo gente de muita qualidade, havia uma latente frustração que se comunicava à escola em geral. Foi uma revelação mesmo entusiástica, mas só mudou verdadeiramente depois de várias crises académicas, depois do 25 de Abril. Houve uma marginalização e, por causa do trabalho, foi muito criticado e ridicularizado. Curiosamente, o meu início de trabalho, fora de Portugal, deve-se a isso, porque esse ‘programaçal’, também num contexto político e europeu, e a democratização, tiveram muito impacto fora de Portugal e, portanto, recebi o primeiro convite para Berlim e logo para a Holanda.

«Não vejo a arquitetura ‘negra’ na China, e na Europa vejo»

Estamos a falar de que anos?
Anos 80. Em 76 fui convidado para fazer o projeto da Malagueira, em Évora. 

É natural de Matosinhos. Como é que era, arquitetonicamente falando, Matosinhos antigamente? 
Nos anos 50, Fernando Távora, que era amigo do Presidente da Câmara, António Fernando Oliveira, foi chamado, não só por ser amigo, mas por ser uma pessoa necessária para o que interessava em Matosinhos – que era trabalhar. A primeira coisa que o Távora fez de importante, em Matosinhos, foi um plano para a zona portuária. Foi o próprio presidente e o diretor da Administração dos Portos que o chamaram. Era preciso fazer um viaduto, a ponte móvel, todo o traçado à volta do porto. A primeira chamada foi para fazer um parque turístico, no que sobrava dos terrenos expropriados, pela câmara, para a construção do porto, portanto, o porto não precisava de tudo. O Távora foi chamado e foi aí que lhes disse: «Atenção! Isto não vai funcionar, com este sistema». Esse Presidente de Câmara interessou-se pelo tema do turismo, porque era uma coisa de que não se falava muito. Chamou o Távora para organizar um concurso, para o restaurante da Boa Nova. Eu e outros trabalhávamos com o Távora. Mas o Távora não podia fazer o concurso. Então disse-nos na altura: «Vocês (colaboradores) façam e eu assino». Éramos cinco. E foi assim que apareceu o Boa Nova. Mais tarde, foi-me entregue a Piscina de Leça. Fiz todo o plano de Leça, da zona histórica e da marginal, que ficou na gaveta, porque, entretanto, veio o 25 de Abril – veio uma situação de muita instabilidade. Eu ia entregar o plano no dia 25 de Abril de 1974. Já não fui. Esse programa, esse interesse pelo turismo, foi muito criticado na cidade, porque era considerado elitista e não orientado para os problemas.

Nunca chegou a avançar...
Acabou por ficar ligado à revisão do plano portuario fundamental para a nova Matosinhos. A Câmara envolveu muitos bons arquitetos, como o Arménio Losa. Matosinhos levou um grande impulso, depois de um período parado, coincidente com a decadência da indústria conserveira. As fábricas começaram a ser abandonadas e esse novo conjunto, ligado ao porto e ao turismo, transformou completamente a cidade e deu outro dinamismo.

O tema da nossa entrevista é o homem Álvaro Siza Vieira e a sua obra. Como foram os tempos da sua formação cívica?
Tranquilos em Matosinhos. Embora tenha havido esse desenvolvimento ligado à Guerra. Houve gente que enriqueceu em Matosinhos. É curioso que os Mestres da Traineira, que enriqueceram, eram como umas vedetas de futebol, não havia radares. Havia os que conseguiam pescar muito e eram disputados, quase como vedetas. E chamavam arquitetos de qualidade. Estou a lembrar-me do Godinho – tem uma fábrica ainda de pé ali ao chegar à Avenida da República, na Brito Capelo.

Quais foram as ruas da sua vivência e como eram as relações?
Eram relações de vizinhança. Os meninos davam-se com os meninos da vizinhança. Era uma vida muito paroquial, mas muito tranquila. Uma infância feliz. 

«O PERCURSO QUE UM DA MINHA IDADE TEM, NUM PAÍS COMO PORTUGAL, EVIDENTEMENTE QUE NÃO PODE TER O MESMO SIGNIFICADO»

E a arquitetura como é que era?
Da arquitetura a única coisa de que me lembro é que havia muitas casas desses mestres (da pesca). E, em frente à casa da minha avó, havia a Farmácia Moderna. Era a ideia que tinha de modernidade, e é engraçado porque, ainda hoje, continua a ser a Farmácia Moderna. Até escrevi, uma vez, um texto sobre a Farmácia Moderna. Quando havia a polémica do moderno e pós-moderno, em que, para finalizar, dizia que não tinha conhecimento de nenhuma farmácia que tinha sido pós-moderna, mas a «Moderna» lá continuava.

A casa da sua avó ficou-lhe na memória?
A casa da minha avó era uma das chamadas «Sete Casas». A minha família foi para o Brasil e depois veio de lá. Na altura, o comendador, que era o Sr. Matos, construiu as «Sete Casas», e a casa dele, que era uma casa magnífica, na esquina da Avenida da República e Brito Capelo, foi demolida. Uma das casas foi oferecida a uma tia, irmã do meu pai, que era afilhada do Sr. Matos. Atualmente é a casa da minha irmã Teresa. Do que me lembro, e devia ter uns seis ou sete anos, é da doca n.º 1. O ambiente de Matosinhos era bastante marcado pelas fábricas de conservas. Depois começou a haver a concorrência de Marrocos e a indústria começou a perder. E o ambiente era muito marcado pelas mulheres da fábrica, porque a mão de obra era feminina. Dormiam na Real Vinícola – hoje Casa da Arquitetura.

Com o que é que brincava quando era criança?
Com os vizinhos. Houve uma altura em que (e percebe-se porquê) os meninos brincavam à guerra, porque começaram a aparecer os movimentos de propaganda, e os soldados alemães, em massa, e os aliados, dividiram-se. Portanto, organizávamos guerras simuladas no quintal.

E tirando essas ‘simuladas’, de que forma é que a guerra o marcou?
Recordo-me da colaboração dos meninos a pôr fitas nas janelas, nos vidros, porque receava-se que houvesse um bombardeamento [e esteve para haver]. Se o Franco não tem fechado a porta ao Hitler, quando percebeu que o Hitler cobiçava a aliança, e se o Franco se tivesse aliado ao Hitler, seria muito difícil resistir. Lembro-me de, à noite, as luzes terem de estar todas desligadas e, de uma vez, vir a legião (algo como defesa civil do território) e bater à porta porque nos tínhamos esquecido de que existia uma claraboia e, no interior da casa, a luz estava acesa, o que se e via no exterior. E lembro-me do fim da guerra. Houve uma festa grande. 

«A CONCENTRAÇÃO É FUNDAMENTAL E É A RESPOSTA AO MEDO»

Existe algum traço do seu pai, do seu avô que o tenha influenciado para este talento da arquitetura, das artes?
O meu bisavô, talvez, através dos relatos e das fotografias. O meu bisavô era fotógrafo em Belém do Pará (Brasil). Aliás, a minha irmã publicou recentemente um livro, depois de uma pesquisa no Brasil e aqui, e com o que tinha em casa, porque, quando a família veio, trouxe algumas fotografias, não as máquinas. Esse bisavô foi um grande fotógrafo. Teve, por exemplo, uma medalha na exposição de Chicago. Esteve em Paris no dia da inauguração da Torre Eiffel. Era um homem com muita energia. Um homem moderno. O meu pai contava aos meninos coisas do Brasil – o meu pai veio muito novo, tinha uns 13 ou 14 anos. Sempre ficamos com uma ideia nítida do Brasil, através dos relatos que fazia o meu pai. Ele fez um álbum do Pará, que foi editado com fotografias dele, de Belém do Pará. Portanto, aquilo é capaz de ter tido alguma influência. Lembro-me também de que um tio meu, o irmão do meu pai, quando eu era assim (pequeno) pegava-me ao colo, entregava-me um papel e ensinava-me a fazer desenhos, sobretudo cavalos. Devo dizer que foi ele que me ensinou e habituou a desenhar. A determinada altura disse-me:«tens de assinar esses desenhos» e, pronto, comecei a assinar. Inventou um nome de guerra para eu assinar.  

Qual era esse nome?
AJO.

AJO?
Sim. AJO. Porque eu sou Álvaro Joaquim. Ele inventou aquela sigla (risos).

Portanto, Belas Artes veio pela influência do tio?
Acho que sim, porque realmente comecei a desenhar. Nos primeiros desenhos ele pegava-me na mão, mas, depois, a minha mão começou a ser melhor do que a dele (risos). Ele sempre me entusiasmou muito, nessa tenra idade. O vício de desenhar ficou. Não há dúvida de que veio daí. As histórias da vida do meu bisavô vieram mais tarde. Aliás, ficaram lá (no Brasil) «Sizas», porque a minha avó e o meu avô morreram lá, o meu bisavô é que morreu cá, pouco depois, mas ficaram lá irmãos da minha avó. Naquela altura, a comunicação não era como hoje, perdeu-se completamente a relação. Mas, mais tarde, a minha irmã, que é a diretora dos arquivos, passou a ter muito contacto com o Brasil, e também a recolher muita informação sobre o bisavô, e a contactar os fotógrafos brasileiros, e, em determinada altura, descobriu «Sizas». Ainda por cima, eu tive um projeto no Brasil... e começaram a aparecer «Sizas». A determinada altura fui convidado para participar numa exposição com fotografias do bisavô e do Pará, e desenhos meus, dos meus lugares, como estão agora. Fui ao Pará. Ainda me lembro de ir no carro, na estrada, e ouvir um grito: «primo!». Conheci alguns.

Já fez uma casa para si?
Tenho um T2 em Évora. Por duas razões: trabalhei naquele plano uns 15 ou 20 anos e e já estava cansado de ficar no hotel, porque ia todas as semanas a Évora. Ou ficava no hotel ou em casa de um colaborador meu, que consegui convencer a ir para Évora. A outra razão é que a casa é na Malagueira e, de acordo com os princípios do plano, havia coisas que queria fazer nas casas, mas não eram aceites. Eram cooperativas e não gostavam, achavam que era mau e pobre. Aproveitei para fazer aquela casa (a minha) para introduzir alguns desses aspetos que não eram aceites: um era as canalizações à vista, porque as casas eram muito baratas, e as paredes eram em blocos de cimento, de madeira e a cobertura teve de ser inicialmente em fibrocimento – ainda não tinha o carimbo de cancerígeno –, depois, numa fase posterior, era de lajes de betão; depois, eu queria fazer os tubos à vista. Então fiz na minha casa – em aço e inox –, e as pessoas viram e gostaram. Quando ia para lá dormia em casa. 

Ainda tem essa casa?
Ainda tenho, mas agora está alugada a um arquiteto historiador inglês, que ficou com os arquivos da Malagueira. Está, desde há anos, a tentar convencer a Câmara a fazer um núcleo central.

Como é que vê a arquitetura no futuro?
Negra.

Porquê?
Nesses tais passados anos, a gente dizia: «Na Europa não acontecia isto», mas agora nem há essa ‘consolação’, porque, lá fora, em muitos países, é muito pior ainda, o hábito do arquiteto que só faz um belo desenho, uma imagem, em geral, terá de ser uma imagem virtual e depois vai-se embora. Quem quer um arquiteto na obra?! Ninguém.  Depois vai-se embora. Como eu recebi uma carta de uma obra que fiz, em França, em que dizia: «Nós queremos é o seu talento, deixe essa ideia de fazer pormenores, deixe isso aos especialistas» – neste caso os especialistas são os construtores –, é que depois esses é que decidem os pormenores. 

E o cigarro é hábito, inspiração, ou é simplesmente bom?
Não. Na minha idade há muitos médicos que dizem que interromper o cigarro ou o tabaco é perigoso, porque é um choque no organismo. Eu já tenho justificação para continuar a fumar (risos). 

É a justificação para não deixar de fumar?
Isto é real. Aliás, devo dizer que três colegas meus, que deixaram de fumar, em diferentes alturas, já com alguma idade, tiveram problemas de coração. Tenho 85 anos. Justifica-se que deixe de fumar para durar até aos 150 anos?!

Já fuma há quantos anos?
Comecei a fumar tarde. Acho que tinha 20 anos. Na altura, começava-se a fumar aos 12. Mas há uma coisa. Não travo.  Sou um fumador de terceira categoria (risos).

«Penso com muito mais medo é de ficar inutilizado e não morrer»

Tem sempre pouco tempo e anda sempre a correr. Gosta desta corrida contra o tempo?
Gostava era de poder correr (risos). Não posso. Portanto, ando devagar e lentamente.  Uma pessoa, em relação ao tempo, perde sempre. Não vale a pena correr. Mantenho a atividade que posso, embora tenha cortado muito com viagens e assim. Embora hoje tenhamos outros meios de conhecimento de local. Tenho muito trabalho na China, na Coreia, e fui lá dez vezes. Trabalho com o arquiteto Castanheira, com quem já trabalhei na Holanda e na Itália, e que é muito mais novo, muito bom arquiteto, e muito enérgico, e ele vai lá, a cada mês e meio, mais ou menos. Temos tido a sorte de todas as obras que temos lá serem de gente que queria qualidade e apoiava condições de trabalho boas. Respeitavam os desenhos, etc. Isso na Europa já é muito difícil. Por isso é que não vejo a arquitetura ‘negra’ na China, e na Europa vejo. 

Tem de haver troca de ideias entre o arquiteto e a equipa de construção? 
Sim. Tem de haver uma coordenação. A qualidade de um edifício vem de como é construído. O trabalho é de equipa. É preciso engenheiros e arquitetos. Um arquiteto não trabalha sozinho. Agora também saiu uma lei, que está aprovada, em que as equipas têm de ter obrigatoriamente um coordenador engenheiro. Quer dizer que o arquiteto já está praticamente afastado da assistência à construção, porque também há umas equipas de gestão, e um especialista não pode ser coordenador por natureza. Se é especialista, não há nenhum que esteja especializado em tudo, portanto, como é que pode ser coordenador?!

O Álvaro Siza é um ícone. Ganhou uma panóplia de prémios. Tem um conhecimento enorme. O que é que acha que dirão de si daqui a muitos anos?
Nada (risos). Aí estou a tirar as palavras do Saramago, que dizia: «daqui a 100 anos já ninguém se lembra de mim». Bom, eu, não sendo o Saramago, tenho de encurtar os anos, já não são 100, mas serão uns 20 ou coisa que o valha (risos). O que pode ficar, de cada um de nós, é o que se comunicou, e que, aqueles a quem comunicou, comuniquem. Porque o que comunicam não é só o que vem dele, mas, sim, o que vem de muitos. 

Refere-se à passagem do conhecimento?
À passagem, à absorção, aos contactos, à equipa... depois ficam umas linhas nas histórias da arquitetura.

«Não é muito bem-visto um arquiteto a querer fazer escultura»

Álvaro Siza será tal como o Gaudí ou Alvar Aalto, que também ficaram na história. 
Ficarão umas linhas. O percurso que um da minha idade tem, num país como Portugal, confrontado com outros percursos, evidentemente que não pode ter o mesmo significado. É realismo, não é modéstia. Aliás, tanto me faz, a verdade é essa (risos).

Erra muito?
Não tenho muita confiança. Tenho a consciência de que é como toda a gente. A maneira como projeto é a partir da dúvida, em relação a coisas concretas, e dúvida em relação às minhas próprias decisões. Ficarão erros, evidentemente. Mas, pelo menos, não ficam como quando fiz o prédio em Berlim, que veio no jornal da Ordem dos Arquitetos, nos anos 80: vinha a fotografia do prédio que fiz e as legendas diziam: «O prédio mais estúpido de Berlim». Não acho. E pensei: «Bem, pode ter grandes defeitos, mas estúpido não é». 

Qual foi a coisa mais fora do normal que lhe pediram para inserir num projeto?
Muitas coisas com as quais não concordo aparecem. Um projeto faz-se também dessa espécie de conflito, algo que não tenho problemas com que haja esses desencontros. Pelo contrário. Esses desencontros é que permitem amadurecer, através do diálogo. Às vezes o diálogo é impossível, mas é raríssimo acontecer. Por exemplo, falando de um projeto, que é intensamente vivido, subjetivamente, que é a casa: nenhum cliente, para quem tenha feito uma casa e, por vezes, com divergências muito relativas, ficou zangado, todos eles ficaram amigos. Não tenho nenhum que não tenha ficado amigo e, muitas vezes, houve discussões. Agora, quando há uma impossibilidade de diálogo isso, em geral, revela-se logo. Não é uma batalha que se diga «isto é uma batalha perdida» porque quem vem pedir a um arquiteto para fazer uma casa, vai àquele arquiteto porque quer, e porque já conhece as ideias das suas obras. Às vezes também acontecem coisas engraçadas, por exemplo, lembro-me de um cliente que, ao fim de 30 anos com projetos meus, me diz: «eu gosto é daquela casa que você fez...». 

Desenho: Isto é Leça da Palmeira

Como é que lida com o medo?
Quando me entregam um projeto, sim, tenho medo. Em primeiro lugar, os projetos são todos difíceis e tenho medo de não me engatar e, nessa condição, de haver prazos, e, portanto, o que sei...

Fica ansioso?
Sim, um bocado ansioso. Empenho-me e concentro-me. A concentração é fundamental e é a resposta ao medo.

Como é que lida com a morte?
À espera dela (risos). Não penso muito nisso. Se pensarmos muito, é desagradável enquanto se está a viver. Penso, com muito mais medo, é em ficar inutilizado e não morrer. Isso é que é péssimo. Gostaria de morrer de repente, acho que isso é bom, seria a morte mais agradável (risos). É muito desagradável para as famílias, os amigos, é terrível, mas, para o próprio, é o melhor. O ficar incapacitado e viver ainda anos, isso é que não, até porque, quando isso acontece, nunca se sabe verdadeiramente, nem os médicos sabem, se a pessoa que não fala tem alguma consciência ou não. Em relação a isso tenho medo.

«O QUE MAIS ME ABORRECE É ABORRECER-ME (RISOS), POR ISSO É QUE AOS SÁBADOS E DOMINGOS VENHO PARA AQUI (ATELIER

Se não fosse arquiteto o que é que seria?
Queria ser escultor. 

Escultor?
Entrei para Belas Artes porque a minha família, o meu pai, sobretudo, ficou muito preocupada quando lhes disse que queria ir para escultura. Naquela altura! Hoje já não é assim, ligava-se a vida de boemia à pobreza. O meu pai ficou preocupado. Na escola havia escultura, arquitetura, pintura. Acabei por entrar na escola e acabei por interessar-me (arquitetura).

E a escultura?
Ainda faço, mas é uma atividade quase clandestina. Não tem muito que ver com a arquitetura, porque é outra dessas manias da especialização. Escultura é escultura, pintura é pintura, arquitetura é arquitetura. Não é muito bem-visto um arquiteto a querer fazer escultura. Mas faço. Ainda há pouco fiz uma exposição em Espanha. 

Com esculturas suas?
Esculturas minhas e de outro escultor. É uma fundação, de um grande escultor espanhol, que já morreu, o Alfaro. É engraçado porque o catálogo que puseram tinha ‘Alfaro e Siza’. As pessoas pegavam no catálogo e diziam «estes ‘gajos’ estão malucos, escrevem ‘Alfaro’, em vez de ‘Álvaro’», achavam que era um erro. 

O que é que o faz rir?
Um bom filme. As conversas com amigos, que, muitas vezes, levam ao riso. Quando estou maldisposto com alguma coisa também me rio de mim. É uma coisa muito saudável. E programas de televisão e o cinema. 

E o que é que o faz chorar?
Ah, isso não digo.

E o que mais o aborrece?
O que mais me aborrece é aborrecer-me (risos), por isso é que aos sábados e domingos venho para aqui (atelier). Primeiro, para fazer um balanço, um mapa dos trabalhos, pois é preciso ter ligação entre eles e, depois, porque se não faço nada, acabo, como já não posso correr, sentado numa cadeira a ver televisão, e isso é que é muito deprimente. Aborrece-me, claro. Até porque há muitos programas maus, mas também há muitos programas bons.

Ainda tem sonhos?
Ainda.

Sonha com o quê?
Às vezes com projetos que estou a fazer, em que surge a solução e, no dia seguinte, quando se acorda entusiasmado, vê-se que era um disparate tremendo. Muitas vezes sonho com pessoas que nunca vi e que aparecem no sonho muito nítidas e reais. Há um sonho de que nunca mais me esquecerei pois foi de um realismo incrível e a cores: ia a subir, com amigos (o Távora era um deles), depois da ponte antiga de Vila do Conde, e, de repente, sentimos uma onda gigantesca nas costas e começámos a fugir; mas atravessava-se na estrada um autocarro amarelo. Quando estava prestes a morrer afogado acordei aflitíssimo. 

Escapou dessa...
Esse sonho tinha uma razão. Alguns não têm razão. Mas este tinha. Quando encalhou um petroleiro, no Porto de Leixões, antes de entrar no porto, foi parar ao Castelo do Queijo, e eu ia a descer a ‘rampa’, neste caso a Avenida da Boavista, e, de repente, vejo o céu todo vermelho, foi uma coisa impressionante. O petroleiro ardeu. De certeza que foi a origem desse meu sonho. 

Qual é a sua cor predileta?
A cor favorita, para um arquiteto, depende das cores que vai inserir no seu projeto. Não há cor favorita, há uma cor procurada. 

Alguma música que goste de ouvir...
Gosto de ouvir música. Em novo, há assim uns períodos muito interessantes, coletivos. A música veio coletivamente, não em grandes recitais. Lembro-me da época em que apareceu em força a música brasileira, a Maria Betânia, o Gilberto Gil... Passavam-se serões a ouvir música. Depois houve uma altura em que eram os Beatles. Comprei os discos todos. O branco era o meu favorito. Depois veio a fase de influência política, o Paco Ibáñez, o Zeca Afonso, José Mário Branco... Lembro-me de que, na noite de 24 de abril, estava em casa, com um grupo de amigos, e tinha comprado, em Barcelona, o disco do Paco Ibáñez, que é com música de poesias espanholas, muito revolucionárias, e estivemos, até às duas da manhã, a ouvir o Paco Ibáñez. E, por volta das 05:00 da manhã, telefona-me um dos amigos e diz: «liga o rádio». Pensei: «este tipo está maluco». Liguei o  rádio. Estavam a dar as primeiras notícias do 25 de Abril. Quando liguei, eram as marchas militares. Percebi logo o que era. Toda  a gente percebeu, até porque, pouco antes, tinha havido um grande golpe militar. Aquilo estava iminente. 

Algum filme  que o tenha marcado... 
Muitos. Na altura, na entrada da Faculdade, foi a fase dos filmes neorrealistas. Tiveram um impacto enorme. Depois, pela vida fora, Hitchcock. Os franceses nunca me impressionaram. Gostava do Aniki Bobó. E o filme sobre o Porto, O pintor e a Cidade, de Manuel de Oliveira. Muito bom. 

E agora um desafio. 
Um desafio?

Em função do que nós conversamos aqui: as memórias. O que desenha em papel?
Foi tanta coisa...

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